O escritor israelense Amós Oz tem um livro com o curioso título de Caixa-Preta. A trama deste romance excepcional não trata de quedas de avião ou naufrágios de transatlânticos, mas de desastres relativamente cotidianos, como uma relação amorosa frustrada e um drama familiar. A caixa-preta do título, portanto, é apenas uma metáfora do esforço para tentar entender os erros humanos que provocaram uma determinada tragédia pessoal. A ação se desenrola por meio de cartas trocadas entre diferentes personagens: uma mulher, seu ex-marido, o filho adolescente, o segundo marido. À medida que a história avança, diferentes perspectivas dos fatos vão sendo apresentadas aos leitores, e somos obrigados a reformular nossos julgamentos sobre os personagens. Quem a princípio parecia honesto talvez não fosse, quem parecia louco talvez fosse o mais equilibrado – e assim por diante até o impactante desfecho.
Na ficção barata, porém, o mundo é dividido entre bandidos e mocinhos em estado puro. Nobreza de espírito e torpeza de caráter nunca se misturam no mesmo personagem: quem nasce bom morre melhor ainda. Na vida real e na boa literatura, nem sempre é assim. Entre o herói e o crápula, há infinitas gradações de caráter. Nesse teatro confuso, em que os atores nem sempre ficam parados nas mesmas posições, vamos tentando nos movimentar sobre um chão que se move sob nossos pés – construindo uma expectativa mais ou menos realista em relação às outras pessoas, ao mesmo tempo em que tentamos demonstrar uma certa consistência nas nossas próprias atitudes.
É difícil admitir, mas o fato é que a maioria de nós move-se a maior parte do tempo mais por circunstâncias do que por grandes princípios morais. Por isso ficamos tão fascinados por aqueles que são capazes de transcender circunstâncias adversas, mesmo quando isso significa enfrentar alguma espécie de risco pessoal ou alguma consequência negativa, assim como desprezamos aqueles que aparentam não respeitar qualquer tipo de princípio.
Por oferecer ao público a figura de um vilão irresistivelmente desprezível, a caixa-preta moral do naufrágio do Costa Concordia acabou gerando mais interesse do que o próprio dispositivo de gravação encontrado no mar pelos mergulhadores. O capitão Schettino foi descrito por ex-colegas e subordinados como um homem vaidoso, fanfarrão e muitas vezes arrogante – um sujeito capaz de se sair com uma desculpa para abandonar o navio que seria cômica, não tivesse se mostrado trágica: “Escorreguei e caí no bote”. Por mais desagradável que fosse, porém, Schettino talvez se aposentasse sem nunca ter realmente prejudicado ninguém. Seria um canalha do tipo inofensivo se o destino não tivesse colocado uma pedra moral no seu caminho: agir segundo as circunstâncias, livrando a própria pele, ou segundo os princípios da função? Ser bravo ou covarde? Ser egoísta ou levar em conta o sofrimento dos outros? São escolhas que todos nós, de uma forma ou de outra, temos que fazer eventualmente – com grandes ou nenhuma consequência.
Coube a Schettino escolher o bote e tornar-se um canalha internacional. Muitos fariam a mesma escolha que ele. Mas nem sequer desconfiam.
-----------------------* Jornalista. Escritora. Colunista da ZH
Fonte: ZH on line, 21/01/2012
"Aquilo que a memória amou, fica eterno"
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